Hoje eu tive que sair tive que me preparar me munir e me vestir para a guerra que é existir no mundo e principalmente no Brasil onde para sair às ruas é preciso saber lutar por não haver paz que dure por isso me visto e me armo com fogo nos olhos com pernas que correm com pés que saltam tudo para sobreviver não basta se defender é preciso saber reagir responder ao ataque da sociedade dos homens dos buracos no chão desta cidade das coisas que nos matam e nos apagam o que sobra? quando tudo ruir e não restar nada além do desejo fulminante de partir a impossibilidade de seguir e não olhar pra trás por ser doloroso demais para não dar chance ao arrependimento e aos gritos dos que ficaram hoje eu me vi questionando o olhar do outro sobre mim eu mulher 29 anos e uma ínfima paciência calejada um corpo visto como frágil pequeno e vulnerável coberto por várias camadas de roupa no frio dessa cidade cinza querendo blindar o meu corpo do olhar do meu semelhante querendo não estar ali não estar aqui querendo não precisar me defender para viver querendo não ter de estar sempre atenta forte esperta e consequentemente tensa ao mesmo tempo em que não vacilo não relaxo e não baixo a guarda fuzilando com o olhar aqueles que querem me tomar o sangue ferve todos os dias mas antes do ponto de ebulição eu me pergunto por quê? por que tem que ser assim por que somos assim por que fomos moldados educados assim por que fomos aprisionados enquadrados alienados por quê por quem por quem por que não conseguimos parar a nossa destruição? nascemos humanos e vamos nos perdendo pelo caminho nos tornando o que a sociedade nos fez o que o sis/cistema nos fez peças engrenagens peões para nada além de alimentar o capitalismo faminta e insaciável máquina-monstro que engolirá a tudo no fim (eu não gostaria de acreditar que essa é a única possibilidade) como olhar para o Brasil 2020 este cenário de horror e acreditar que há alguma saída eu já vi esse filme tantas vezes que não entendo mais o conceito da palavra esperança e me pergunto por quanto tempo ainda ela resistirá no meu vocabulário e na minha memória se tudo que meus olhos veem é a sua extinção é a derrocada das nossas falências é o apocalipse now é o plano de dominação dando certo para eles mas nunca para nós e não me diga que nada disso é injusto não me fale de justiça divina não me fale que estamos no mesmo barco não me fale que somos todos iguais que todas as vidas valem quando milhares morrem quando direitos básicos são negados todos os dias quando milhares dormem nas ruas quando há tantas fomes com rostos e nomes quase nunca olhados assistidos recuperados negligenciades esquecides abandonades o destino é quase sempre um fardo viver à margem e não ser visto nem tratado como ser humano tudo lhe é negado vive-se e morre-se sem dignidade apenas mais um número na estatística invisibilizado e animalizado devorado pela máquina de morte que come (a) gente e eu me pergunto desde quando falhamos? quando foi que perdemos nossa humanidade? o Brasil é uma invenção da colonização onde corre a cor vermelha um território marcado pela exploração onde tudo foi construído através do sacrifício de muitos povos uma pátria usurpada de seu povo e um povo drenado de sua humanidade este é o país que não podemos chamar de nosso uma terra de riquezas naturais que não nos pertencem porque aqui nada é nosso água ar ou fogo nada nos pertence muito menos a terra por onde o sangue escorre nada é nosso força de trabalho nome ou pele nem mesmo o corpo que cai nosso apenas o sangue
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Apenas o sangue
Impermanência
escrevo porque tenho fome e tenho nada
porque é preciso caçar este alimento
como o mais sagrado
como o mais urgente
como quem luta pela própria vida
sem garantias de sobreviver
ou de aguentar o peso da realidade sobre o corpo
escrevo porque não basta
apenas exorcizar os demônios
é necessário tirá-los
arrancar pela raiz o mal que plantaram
e destroçar os vestígios
para que nunca encontrem o caminho de volta
escrevo porque me mordo por dentro
e rasgo a pele por fora
sentir a carne viva
que arde e sangra
a cada palavra proferida
a cada víscera servida
escrevo porque preciso libertar as palavras
gritando a minha humanidade
e a impermanência
desta efemeridade
que ouso chamar de vida
estratégias para seguir
Falar em línguas outras
criar novas e desenterrar as que já morreram
dialogar com as coisas que se movem o tempo todo
como o caos
que dorme debaixo da minha cama
e sai pra dançar durante o dia
ele me contou que o mundo já acabou muitas vezes
e que se reinventou tantas outras
disse que o fim não tem fim
como algo renovável ou transmutável
que encontra formas de continuar
se somos feitos da mesma matéria
que fez o caos e o tempo
como podemos aprender a fundar outros começos
a morrer de novo
e seguir nascendo
a encarar o fim como algo a ser ultrapassado
como parte de uma história enterrada no passado
sem retorno
sem respiro
quando é que começa e termina se nem se sabe o que é isso o que como porquê aonde vamos parar se é que há para onde ir onde cair morto como pairamos no tempo e as coisas todas mudas desataram a falar e envelhecer mas nem todas tanto a se perguntar nenhuma resposta confiável nada viável um grito abafado no peito disritmia disrupção não sei mais o que fazer com todos esses dias inundados de medo será que sou eu o mundo o avesso ao contrário falta ar para conseguir gritar lutar talvez sobreviver ser casa para o caos mas não fazer sala desistir da cordialidade normalidade quebrar a rotina o cotidiano como quem rasga regras mas a consciência tranquila pelo menos ela em paz algumas horas um dia que nunca acabou será que dá será que há uma saída mesmo com todas as portas fechadas não sei das chaves do vão da luz da tangente mas tem que haver uma saída talvez por cima pelos ares mas eu não sei voar não tenho asas mas ainda assim invento
um voo um salto uma decolagem uma explosão
eu não sei exatamente como ou porque
sempre queimo tudo no final
para perder-se e encontrar-se
Perder a noção das horas e do tempo
no meio dos dias
e guiar-se apenas pelo céu
as nuvens dançando com o vento que balança os galhos da natureza que minha janela emoldura
perder-se no azul de uma tarde de sol
e encontrar-se no voo do pássaro que passa
rasgando o céu
desanuviando a mente e a alma
viajar pelo céu e ver a lua e o sol trocando de lugar
alargar o olhar
alcançando outras vistas
entrando pelas janelas alheias
com os olhos tomados pelo desejo de paz
guiar-se pelo céu e pelas estrelas
e esquecer dos relógios
tiquetaquear através do coração
para desprender-se das amarras e dos pesos de toda noção
que ousa dizer que este tempo é em vão
que é perdido enquanto é realmente
presente
que verte possibilidades de mergulho e descoberta
de aprender a aprender
recriar e amar
perceber e curar
presentemente transformar
p r e s e n t e f i c a r
como interrogações
como transformar o nó
em palavra
em concreto
pão
e teto
como acreditar na luz
antes de chegar
ao fim do túnel
como abraçar o caos
ainda que falte o ar
e as pernas bambeiem
aproveitar a queda
como se fosse dança
de tudo que veio
antes de mim
antes do antes
de saber que foi assim
e é
do caos eu vim
Estou descobrindo a minha voz
vorazmente
Vozes, muitas. Minhas mas que não existiriam se muitas outras não tivessem aberto o caminho com seus cantos, gritos e palavras.
Para que agora eu pudesse estar aqui
tecendo palavras
Elas todas inventadas para nomear ordenar e fazer caber o sentido que não cabe
Estou descobrindo que aquilo que brota nas entranhas e dança no meu corpo é voz querendo sair pra não virar nó. Para que não entale na garganta e doa. Doa além do habitual.
Estou apalpando os sons das palavras da minha voz
Sendo o sinal e também, o ruído
Descobrindo a beleza do caos que me fez (e que eu quero fazer também)
estou parindo a minha voz
Aquilo que vim para dizer
e que veio para ser
dito
feito
sentido
para não calar
antes de tudo
No princípio
nada
e do caos
Princípia
O nada, inexplicável. Quase intangível. O nada não se explica, não pede porquê, licença, desculpas, não quer ser pensado.
Houve desde
não se sabe apenas
existe
O caos se instala sobre o nada, pressionando-o contra as paredes da existência, implodindo e explodindo todos os momentos que se querem agora. Que se fazem agora. O caos é real. Primitivo e presente. Sempre presente. Não se pode apalpá-lo. O caos, que assim como o nada não pede licença, só pode ser sentido através de si mesmo. Em tudo que é caótico e quente. E ferve. É possível senti-lo através das batidas. Do corpo, do som, da terra. Das potestades que pulsam nas origens.
Pulsam até o ápice, até que não haja possibilidade de ordem, mas de condensação, grito, furor, manifestação. Até o momento em que o vermelho ecoe em meio ao caos, nascendo divinA, e a terra apenas respire.
Respirem.
Uma deusa nunca nasce em silêncio. Ela molda a existência das palavras, dos sentidos, dos gritos e ânsias vindos das entranhas. Grita, ruge, uiva e ri. Se faz ouvir com e das entranhas.
Vida
que nasce
crua
nua
a vida e o caos
a vida é
e caminham juntos, diálogo que parece apenas ruído. Ora grita o caos; ora grita a vida. E quando juntos, o divino sempre se manifesta. É assim, desde sempre.
Os deuses não conhecem a solidão.
Deusas não conhecem a solidão. Criam-se umas às outras, dão vida à vida que lhe deram. Brigam, lutam, amam, odeiam, sangram, bebem, gozam. Dão luz vida e morte ao vermelho que lhes saiu das entranhas mais profundas. Criam o efêmero, que já nasce com o peso da morte nas costas. Mas que também é vivo. É carne, sangue, cerne. Osso, pelo, cabelo, fúria. E alma. Almas que se acariciam e que descobrem o mundo a cada respiro.
Que seja possível tocar o eterno.
Evoé!
escrevo com lágrimas e sem sangue nas mãos
Os estilhaços no chão confirmam que já não existe mais bolha possível. Não há muros ou terrenos seguros. O ar que (ainda) respiramos é tóxico, como nunca. Não sabemos de onde vem o tiro, o campo está minado nessa terra que era mãe e se vê traída. Subtraída por filhos doentes, cegos e sem memória.
O que nos une? Não há mais o lado de cá. Então o que temos em comum? O sangue de todos nós é vermelho. O de muitos ferve. Enquanto o de outros corre.